Este texto foi originalmente publicado em 08 de novembro de 2020 no Medium do grupo.
Capítulo II — Law, Commands, and Orders
Antes de responder “positivamente” às três perguntas formuladas em seu primeiro capítulo, Hart dedica boa parte de seu livro à análise das deficiências no positivismo imperativista de John Austin, cujo pensamento era dominante na teoria do direito anglo-saxã até a publicação de O Conceito de Direito. De fato, para que se tenha tenha alguma ideia de sua influência, o período entre a publicação póstuma das Lectures on Jurisprudence, de John Austin, em 1863, e a publicação de The Concept of Law, em 1961, pode ser visto como um momento em que a teoria do Direito produzida e ensinada fora da América do Norte parecia fazer pouco a nenhum esforço em divergir ou mesmo contestar a ortodoxia acadêmica representada pela teoria de Austin. Nas palavras de Gerald Postema, era como se a disciplina houvesse “entrado de férias”, tomando a aparência de um “vilarejo sonolento, satisfeito e dominado pela teoria do Direito Austiniana”¹.
O leitor atento notará que Hart dedica uma parte considerável de seu livro para criticar e, por fim, rejeitar a teoria de Austin. Assim, para efeitos de contextualização, cabe aqui uma breve explicação sobre o que defendia John Austin.
Resumidamente, Austin sustentava duas noções não-jurídicas básicas, a partir das quais sua teoria do Direito é construída: uma teoria sobre regras e uma teoria sobre soberania. Comecemos com a ideia de regra. Tomando como base a explicação feita por Scott Shapiro a este respeito, podemos entender uma regra como um comando geral. Um comando é a expressão de um desejo para que uma ou mais pessoas façam ou se abstenham de fazer uma ação, sendo tal expressão de desejo apoiada por uma ameaça de sanção. A ideia de sanção, por sua vez, pode ser entendida como uma ameaça de impor algum mal, na hipótese de não realização do desejo expresso, com a ressalva de que, para que algo possa ser considerado uma ameaça, esta ameaça deve ser realizado por alguém que esteja disposto e seja capaz de agir com base na ameaça (ou seja, ameaças que sejam impossíveis ou improváveis de se concretizar não são ameaças num sentido relevante, para Austin).
Até aqui, definido o conceito de comando: a expressão de um desejo direcionado a uma ou mais pessoas para que façam ou se abstenham de fazer certa ação, com base em uma sanção, isto é, uma ameaça possível e provável de imposição de algum mal, na hipótese de descumprimento do desejo.
Isto posto, cabe aqui mais uma qualificação: para Austin, toda regra é um comando, mas nem todo comando é uma regra. Isto porque, como já sugerimos acima, toda regra é um comando geral e nem todo comando possui generalidade. Um exemplo ajuda a esclarecer este ponto. Considere as duas situações a seguir
- Arnaldo, munido de uma pistola carregada, ordena a Bruno, funcionário de um banco, que entregue a ele duas bolsas cheias de dinheiro, caso contrário, atiraria. Para todos os efeitos, considere que Arnaldo não só pode, como também tem toda a intenção de agir com base em sua ameaça.
- Arnaldo, tomando ciência de sua fama como hábil pistoleiro, resolve se aproveitar de sua força. Assim, ele vai à praça pública e anuncia a toda a comunidade que, a partir deste mês, quem ganhasse mais de R$2.000,00 mensais deveria entregar 10% de seus rendimentos a ele, ameaçando atirar em quem o desobedecesse. Considere que, também neste caso, Arnaldo pode e provavelmente cumpriria estas ameaças, em caso de desobediência.
Como o leitor já pode imaginar a essa altura, apenas (2) configura uma regra no sentido estabelecido por Austin, dado seu caráter geral. Até este ponto, explicado o conceito de regra. Falta somente explicar qual propriedade conferiria juridicidade a uma regra. É aqui que se insere a noção de soberania.
Podemos definir um soberano como uma pessoa ou grupo de pessoas que é habitualmente obedecida pela maioria da comunidade e que não tem o hábito de obedecer a mais ninguém. A título de exemplo destas duas instâncias de soberania, podemos recorrer ao próprio Austin, que identificava o King-in-Parliament como o indivíduo soberano no Reino Unido, e o Povo como o grupo soberano de pessoas nos Estados Unidos da América.
Retomando o ponto estabelecido acima, Austin sustentava que regras jurídicas eram nada mais e nada menos do que o conjunto destas duas noções não-jurídicas mais básicas: regras emanados por um soberano ou, ainda, comandos gerais emanados por um comandante não comandado. É devido a este aspecto que podemos caracterizá-lo tanto como um imperativista, quanto como um positivista jurídico: se regras jurídicas são, em última análise, o conjunto de comandos gerais apoiados em sanções e emitidos por um soberano aos seus sujeitos, os quais majoritariamente têm o hábito de obedecê-lo, então o Direito não só parece explicável sem qualquer apelo a um requisito moral de validade jurídica, mas também é plenamente analisável através de juízos meramente descritivos. Um aspecto importante que podemos depreender deste ponto é que Austin parece ter construído uma teoria do Direito sem qualquer recurso a uma noção de normatividade. Como veremos em outros capítulos de O Conceito de Direito, contudo, este é uma das vários razões pelas quais Hart rejeitará — com razão, poderíamos dizer — seu projeto teórico.
Por fim, ainda que a obra de Hart marque uma considerável rejeição da teoria do Direito defendida por Austin, como veremos, não é tão fácil afirmar o mesmo acerca de sua visão metodológica ou meta-teórica: ainda que Hart e Austin tenham diferenças metodológicas significativas, Hart compartilha com Austin uma preocupação metodológica com a separação entre questões sobre os eventuais méritos do Direito e questões sobre sua existência. Nas expressão emblemática de Austin, em The Province of Jurisprudence Determined: a existência do Direito é uma coisa, seu mérito e demérito é outra².
Recomendações adicionais
- A exposição sobre a teoria de Austin realizada neste texto se baseia na excelente explicação feita por Scott J. Shapiro em seu livro, Legality (2011). Recomenda-se fortemente a leitura de seu terceiro capítulo, “Austin’s Sanction Theory” como complemento.
Referências bibliográficas
- POSTEMA, Gerald J., A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence: Volume 11: Legal Philosophy in the Twentieth Century: The Common Law World, New York: Springer Netherlands, 2011, p. 3.
- AUSTIN, John, Austin: The Province of Jurisprudence Determined, Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 157. Tradução livre.