Este texto foi originalmente publicado em 15 de novembro de 2020 no Medium do grupo.
Capítulo III — A diversidade das Leis
Nos artigos anteriores da nossa série de quatro textos sobre O Conceito de Direito (I, II), entre outras coisas, vimos que H.L.A. Hart compartilhava com John Austin uma mesma intenção metodológica, qual seja, empenhar-se em descrever o que é o Direito e assim circunscrever o objeto de estudo da Teoria do Direito (Jurisprudence) — elucidar o conceito de Direito a partir de sua distinção de comandos morais e meros hábitos, sua relação com eles e a coerção — , mas se diferencia substancialmente em sua descrição. Até a publicação da grande obra de Hart, a Teoria do Direito havia, em grande parte, “aceitado” a definição de Austin de que o Direito pode ser resumido a “comandos” ou regras sustentadas por ameaças emanadas por um soberano (“orders backed by threats”). Essa teoria é chamada de imperativista, e Hart deixa bem claro que ela é incapaz de descrever o Direito, pois na tentativa de unificação e simplificação do que um sistema jurídico é, Austin e os teóricos que perpetuaram essa definição pecaram por ofuscar e distorcer a realidade.
Hart dedica os primeiros quatro capítulos de sua obra para refutar a teoria imperativista, uma escolha até controversa, segundo alguns, vez que sua discordância maior era em relação ao jusnaturalismo, não só em suas descrições, mas também em suas intenções metodológicas. Tanto Austin quanto Hart se propuseram a descrever o Direito como ele é, buscando analisar, através da linguagem, o que o Direito é para quem vive sobre ele, não o que deveria ser, como faziam comumente os jusnaturalistas. Por que o autor resolveu criticar outro positivista, quando poderia discorrer sobre suas objeções ao jusnaturalismo, de que discordava mais?
O imperativismo de Austin dominava a Teoria do Direito à época de Hart, sendo assim, fazia mais sentido desenvolver uma tese própria apenas depois de enfrentar a dominante, afinal, é preciso justificar a “falência” de uma para que outra tenha razão de ser. Como refere o autor, “Na verdade, constitui uma virtude da análise de Austin, quaisquer que sejam os seus defeitos, que os elementos da situação do assaltante não sejam em si, diferentemente do elemento de autoridade, obscuros ou necessitados de muita explanação; e daí que sigamos Austin na tentativa de construir a ideia de direito a partir deles. Não teremos, porém, esperança, como teve Austin, de triunfar, mas antes de tirar ensinamentos da nossa derrota.”¹. Tão logo inicia a descrição de um dos elementos centrais da teoria imperativista — ie, ordens sustentadas por ameaças (“comandos”) emitidas por um soberano — , o autor começa suas críticas com base na análise da linguagem. Austin utilizou o exemplo de um assaltante armado para explicar como o Direito, enquanto “comandos emanados de um soberano”, se diferencia de um “comando” do assaltante que, à base de uma ameaça, compele a vítima a corroborar com o resultado desejado.
Hart reconhece, assim como Austin, que há diferenças entre um assaltante que ordena (“to order”) e um soberano que tem autoridade para dar uma ordem (“to give an order”) — veja bem, o autor elucida essa diferença através da linguagem — e, portanto, existem características que são peculiares ao Direito (e à outras ordens normativas, como a religião e demais autoridades não-jurídicas) e que não se afiguram na relação de imposição do assaltante. São elas: (i) sua generalidade, isto é, o Direito prescreve uma série de condutas que devem ser observadas por uma classe geral de indivíduos; (ii) sua persistência, ou melhor, a persistência das prescrições emanadas pelo Direito, das quais se espera uma continuidade, diferentemente dos “comandos” do assaltante armado; e (iii) o hábito de obediência por parte daqueles que estão sob a égide das prescrições emanadas por um Poder Legislativo, que é soberano obedecido por todos em seu território, e que não obedece a mais ninguém.
Apartir de então, Hart passa a expor as falhas dessa simplificação do conceito de Direito em três principais objeções: em primeiro lugar, a explicação de Austin é incapaz de conceber a existência de “regras que conferem poderes” e atribuições (“power conferring rules”), que são regras responsáveis por regular, se não a maioria, boa parte das nossas vidas (eg, leis que conferem faculdades da vida civil, como o matrimônio, testamentos, contratos, etc.) e, o que é mais comum quando pensamos em “conferir poderes e atribuições”, as regras que definem procedimentos e competências legislativas e jurídicas. Em tempo, Hart faz uma objeção ao modelo “if-clause” (cláusula condicional ou “e se”) proposto por Hans Kelsen, em que ele resume o Direito a “ordens para que agentes competentes executem sanções diante do descumprimento de uma norma”. Essa tese é facilmente esvaziada diante da (evidente) existência das regras que conferem poderes, que não podem ser tidas — como Kelsen também tentou — como meros “fragmentos de leis” — ie, a ideia de que uma lei só seria “completa, genuína”, se previsse uma sanção em caso de seu descumprimento.
Os perpetuadores da teoria de Austin tentaram contornar a crítica de Hart à professada uniformidade do Direito como ordens sustentadas pela ameaça de sanção no caso das regras que conferem poderes através da tese que iguala a nulidade à sanção, o que Hart igualmente rejeita. Não é da natureza das nulidades impor mal algum (a arguição de nulidade de uma sentença emitida por um juiz incompetente não poderia ser, de forma alguma, uma “pena” a ele imposta, por exemplo). Da mesma forma, regras que impõem deveres sob a ameaça de sanção permanecem como guia de conduta ainda que a sanção deixe de existir, enquanto regras que conferem poderes inexistem sozinhas, ie, sem a nulidade, são completamente esvaziadas. Não obstante, Scott J. Shapiro elucida outras duas falhas do modelo austiniano quando de sua tentativa de equiparar a nulidade à sanção: (i) ao não reconhecer um ato, a ordem jurídica simplesmente está a desconsiderar o benefício a ser conferido a ele, não impondo um ônus; (ii) nulidades são apenas motivações temporárias, vez que só se aplicam ao momento do exercício de um poder/faculdade, enquanto sanções são permanentes, quer dizer, somos encorajados a não cometer determinados atos pela constante ameaça de sanção².
Em segundo lugar, a tese do soberano que, para tanto, deve ser obedecido por todos mas não obedecer a ninguém, não explica o Direito como ele é, pois mesmo o Legislativo é vinculado por suas leis (e apenas por uma “divisão artificial” da pessoa do legislador como tal e em sua esfera privada é que poder-se-ia tentar reconhecer essa imposição “de cima para baixo” como característica de um ordenamento jurídico). Em terceiro lugar, o modelo de Direito de Austin passa a falsa noção de que é possível situar em que momento uma regra passou a existir no ordenamento jurídico quando, em verdade, a realidade é mais nebulosa que isso. Esse último ponto requer que o leitor pense não só no Direito em Estados com leis escritas/”civil law”, mas também naqueles em que o costume é um elemento importante da ordem jurídica (“common law”) e, nem por isso, deixaria de existir “Direito” tal e qual podemos assim reconhecer. No que diz respeito aos costumes, Austin entendia que esses só existiriam juridicamente a partir de sua aplicação por uma Corte, e por isso um costume seria um “comando tácito” do soberano, o que, em última instância (e levado às últimas consequências), conforme Hart pontua, implica que o soberano sabe de cada costume aplicado em todos os tribunais em seu território e, além disso, sabe o que está sendo comandado³ — algo que acaba sendo, evidentemente, insustentável.
A questão dos costumes merece uma análise minuciosa — que o autor efetivamente faz ao decorrer da obra — mas, até aqui, resta saber que Hart discorda da ideia de que “costumes só existem depois de aplicados”, pois, se é possível reconhecer a existência jurídica das leis promulgadas por determinada legislatura antes mesmo de sua aplicação, por que os costumes seriam diferentes? Ainda que fosse o caso, é equivocado pensar que o reconhecimento do status jurídico de um costume quando de sua aplicação por uma corte se dá por um “comando tácito” do soberano”, como mencionou Austin. Por ora, o autor tocou em temas importantes, os quais nos resta resumir:
(i) O conteúdo do Direito: o Direito não pode ser resumido às regras que impõem deveres (“duty imposing rules”) dada a existência das regras que conferem poderes e faculdades para que os cidadãos produzam atos válidos e até criem Direito, seja na esfera privada, seja no Direito Público;
(ii) O âmbito de aplicação das leis: o soberano é vinculado pelas leis que ele mesmo origina e, portanto, o modelo de Austin (e o “soberano hobbesiano”) não explica o Direito em seus reais termos; e
(iii) Modos de origem do Direito: nem sempre é possível afirmar com certeza o momento que nasce uma lei ou costume com status jurídico, não obstante, o Direito não é apenas o que as cortes dizem que é, nem se limita ao que os parlamentares promulgam ou àquilo que agentes do Estado dizem quando aplicam uma sanção.
Em conclusão, elucidamos o fato de que ameaças podem compelir as pessoas a fazer algo, mas não são capazes de originar uma obrigação, o que é, em última instância, uma característica do Direito. Muitos artifícios foram criados para fazer com que o modelo imperativista vingasse, como a “expansão” do significado de nulidade, a tese de que o soberano pode ser “dividido” em duas pessoas, a de que regras sem sanção são meros “fragmentos” de regras e mesmo a noção de “comando” foi ampliada para caber o “comando tácito” do soberano.
Em razão da simplicidade de sua intuição metodológica e descrição, Austin foi capaz de construir uma Teoria do Direito constituída por elementos não-jurídicos e, sem dúvida alguma, extremamente básicos e intuitivos. Contudo, para Hart, sua descrição acabou por obscurecer mais que demonstrar o que o Direito é, corrompendo a intenção metodológica de Austin e, ao mesmo tempo, o maior atrativo da teoria, a saber, sua simplicidade/intuitividade. Nos próximos capítulos, o autor se dedica a apresentar a resposta para essa pergunta através da ideia de que, diferente da tentativa de unificação do Direito no conceito de comandos/ordens apoiadas por ameaças, ele em verdade é o resultado de uma fusão de vários tipos de regras diferentes.
Recomendações adicionais
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A Equipe ÆQUITAS recomenda fortemente o podcast “Jurisprudence Course”, por Scott Shapiro, especialmente o 4º episódio. Aqui: https://open.spotify.com/show/6yOIMnVASRLN2nPLlBL0Dn.
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Do mesmo autor, sugerimos “Legality”, o livro em que se baseia o podcast. Sugerimos a leitura de seu terceiro capítulo, “Austin’s Sanction Theory”.
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O verbete “John Austin”, na Enciclopédia Jurídica da PUCSP, também é de grande ajuda. Aqui: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/43/edicao-1/john-austin.
Referências bibliográficas
¹ HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. 2ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. p. 25–26.
²-³ SHAPIRO, Scott J. Legality. Cambridge: Harvard University Press, 2011. p. 65 e 73.