Este texto foi originalmente publicado em 25 de outubro de 2020 no Medium do grupo.

 

Não é exatamente controverso afirmar que a compreensão e o devido engajamento em debates filosóficos contemporâneos exige um esforço considerável para que se faça possível tomar conhecimento das principais posições defendidas, os argumentos utilizados para tanto, seus possíveis problemas, eventuais soluções concebíveis, entre outras coisas. É dizer: por mais que se possa conceber, em um sentido ainda interessante, que a reflexão filosófica ocorra apartada dos pares acadêmicos, mediante engajamento com certos problemas a partir de uma atitude analítica e, por que não, crítica, a produção de conhecimento e progresso filosófico (se é que algo assim, de fato, existe) parece depender, invariavelmente, da atividade compartilhada e contínua das pessoas através do tempo — e furtar-se deste meio provavelmente faria menos pelos filósofos e filósofas do mundo do que o contrário. Assim, ainda que o engajamento em uma atividade compartilhada, difusa e majoritariamente acadêmica, através de algo que poderíamos chamar aqui de atitude filosófica, não seja examente uma condição necessária para se fazer filosofia, ela talvez o seja para fazer filosofia de alta qualidade, aqui entendida como a produção filosófica relacionada a virtudes epistêmicas como relevância, coerência, veracidade, adequação a evidências, parcimônia, simplicidade etc.

 

Não seria diferente no caso da filosofia do Direito contemporânea, onde é predominante a chamada teoria analítica do Direito, aqui entendida como a filosofia do Direito inserida na tradição da filosofia analítica. Menos controverso ainda seria afirmar que a teoria analítica do Direito, especialmente aquela datada da segunda metade do século XX em diante, tem em H. L. A. Hart e em sua obra de 1961, “O Conceito de Direito” (The concept of Law) a sua maior influência, consistindo em uma espécie de “linguagem geral” a partir da qual muitos dos debates atuais ainda são pautados. Isto é, por mais que o debate contemporâneo na filosofia do Direito não seja, nem de longe, uma mera repetição ou adição de notas de rodapé à obra de Hart, a “conceitografia” consagrada por ele exerce uma inegável influência até os dias de hoje. Esse é, talvez, um dos principais motivo pelos quais sua compreensão é uma etapa fundamental para um entendimento saudável dos debates contemporâneos.

 

Partindo deste pressuposto, esta publicação inaugura o primeiro de uma série de quatro textos que procurarão fornecer uma breve introdução aos quatro primeiros capítulos da obra de Hart, procurando explicitar seus temas centrais e contextualizá-los ao leitor. No decorrer das publicações, também procuraremos indicar outras referências que possam vir a colaborar com o estudo do livro, evitando aquelas que apenas atrapalhariam o foco do que importa neste etapa inicial. Antes de abordarmos a obra de Hart propriamente dita, contudo, cabem três ressalvas:

(i) nenhum resumo supre a leitura da obra original: a leitura desta introdução não deve ser tomada como razão para se evitar ler estes primeiros quatro capítulos de O Conceito de Direito. Muito pelo contrário: deve ser visto como um reforço para sua leitura contextualizada;

(ii) Hart é um dos melhores pontos de partida para iniciantes na filosofia do Direito: por mais que a leitura prévia de outras obras sempre facilite e, mais ainda, enriqueça a leitura de textos filosóficos, este fato não deve servir para desencorajar o leitor iniciante. É interessante manter em mente que o próprio Hart escreveu seu livro pensando em seus alunos da Universidade de Oxford, de forma que os leitores e leitoras de seu texto encontrarão nele um seguro ponto de partida para seus estudos em teoria do Direito.

(iii) certa cautela com traduções é recomendada: sempre recomendamos ler os textos em seu idioma original, o que, obviamente, também vale para o livro de Hart. Contudo, isto não deve configurar um impeditivo àqueles que não se sintam confortáveis com a leitura em uma língua estrangeira, pois há (quase) sempre a opção de obras traduzidas — no nosso grupo, em especial, procuraremos fazer traduções dos textos que ainda não possuem uma versão em português. Isto posto, é necessário uma nota de cautela especificamente em relação à tradução brasileira de O Conceito de Direito pela editora WMF Martins Fontes: no decorrer da obra, foi feita a escolha de traduzir o termo “rule” como “norma”, de forma que conceitos centrais como “Rule of Recognition” e “social rule” encontrarão traduções como “Norma de Reconhecimento” e “norma social”. Esta foi uma escolha equivocada por parte do tradutor. Sempre que possível, o leitor e a leitora devem optar pela expressão “regra” como a tradução para rule em Hart (e para quase todos os demais autores, francamente). Em outros contextos, este comentário até poderia passar por mero preciosismo, mas a verdade é que certos termos empregados em debates filosóficos acabam sendo muito menos intercambiáveis do que, digamos, em uma peça jurídica. Para citar dois exemplos na filosofia do Direito, Scott Shapiro, em Legality, entende “regra/rule” como um tipo específico de “norma/norm”¹, enquanto que, para Hart, o termo “regra/rule” toma um significado específico e relevante, principalmente quando levamos em conta o tipo de crítica à qual este conceito é submetido mais tarde por seu ex-aluno, Ronald Dworkin.

 

Sobre a natureza da moral e do direito - Estado da Arte

Capítulo I — Persistent Questions

A obra fundamental de Hart, como afirmado pelo próprio autor ainda em seu Prefácio, tem dois pressupostos metodológicos básicos: deve ser tomada tanto como um exercício em teoria analítica do Direito (analytical jurisprudence), quanto como um trabalho de “sociologia descritiva”. Para os propósitos desta introdução, podemos considerar que a obra de Hart é um exercício em teoria analítica do Direito no sentido em que diz mais respeito à clarificação do modo em que conceitos como DIREITO são empregados, do que a uma crítica à política e aos sistemas jurídicos. Por sua vez, o termo “sociologia descritiva”, é empregado para deixar claro que não se seguia do fato de seu livro se ocupar com o conceito de Direito que ele não traria implicações para o entendimento do Direito como ele é.

 

Adaptando a terminologia hartiana a termos mais atuais, poderia ser dito que seu trabalho se insere na tradição da chamada “análise conceitual” — ainda que este não seja um ponto livre de controvérsias. Resumidamente, análise conceitual pode ser entendida como a análise filosófica da natureza das coisas no mundo aos quais o conceito DIREITO necessariamente se refere, com atenção especial a questões relacionadas a (i) propriedades necessárias e suficientes para sua existência e (ii) o que se segue do fato do Direito ser Direito — e não algo diferente, como um código de vestuário, normas de etiqueta ou um conjunto de poemas mal escritos. Neste sentido, é preciso tomar o título da obra de Hart com certo cuidado: como já colocou Joseph Raz, um de seus mais relevantes discípulos, a empreitada teórica de Hart é mais bem compreendida como uma investigação filosófica sobre a natureza do Direito, ainda que seu livro se chame “O Conceito de Direito”². Este é um primeiro sentido no qual a análise do conceito de Direito se diferencia significativamente de uma mera análise da palavra ou termo “Direito”. Um outro jeito simples de diferenciar essas atividades seria dizer que o conceito de Direito não é a mesma coisa que a palavra “Direito”, que não é a mesma coisa que a palavra “law”, que não é a mesma coisa que a palavra “Recht”, que não é a mesma coisa que a palavra “derecho” etc…

 

Assim, o objetivo de Hart pode ser colocado como um estudo sobre a natureza conceitual do Direito e sua relação com a moralidade e com a coerção, sendo seus principais interlocutores teóricos o jurista John Austin, de quem falaremos no próximo texto, Hans Kelsen e os realistas jurídicos escandinavos e americanos.

 

O projeto teórico de Hart é fortemente pautado pelas chamadas “perguntas recorrentes” que inauguram o primeiro capítulo de O Conceito de Direito. São três, estas perguntas:

(i) como o Direito e obrigações jurídicas diferem de ordens apoiadas por ameaças?

(ii) o que são regras e como elas se diferenciam de mera convergência de comportamento (hábitos)?

(iii) como Direito e moralidade estão relacionados?³

Essas perguntas devem estar sempre na mente do leitor de O Conceito de Direito. Conforme veremos mais tarde, Hart procurará respondê-las detalhadamente ao longo de sua obra.

 

Recomendações adicionais

  • Aula 07 do Curso de Teoria do Direito do Prof. André Coelho — Hart e a filosofia da Linguagem Comum: https://www.youtube.com/watch?v=rw-zPPz7gYY
  • Uma boa e concisa introdução contemporânea à obra de Hart e suas influências é encontrada no livro de Gilberto Morbach, “Entre Positivismo e Interpretativismo: A terceira via de Jeremy Waldron” (2020), nas páginas 121–156.

Referências bibliográficas

  1. RAZ, Joseph, The Blackwell Guide to the Philosophy of Law and Legal Theory, in: GOLDING, M P; EDMUNDSON, W A (Orgs.), The Blackwell Guide to the Philosophy of Law and Legal Theory, Victoria: Wiley, 2005, p. 325
  2. SHAPIRO, Scott J., Legality, Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2011, p. 41.
  3. HART, H.L.A., The Concept of Law, 2. ed. Oxford: Claredon Press, 1994, pp. 7–10.