Nos primeiros três capítulos de “O Conceito de Direito”, H.L.A. Hart expôs e teceu suas críticas iniciais à Teoria Imperativista de John Austin, para quem o Direito se definia por comandos emanados por um soberano, sustentados por ameaças de sanção. Nós do ÆQUITAS publicamos um texto de apoio para cada capítulo até então, que podem ser conferidos aqui: (I), (II) e (III).

 

Nessa empreitada, notamos algumas características centrais da teoria de Hart, quais sejam: (i) o autor buscou, em sua obra, elucidar o conceito de Direito como ele é a partir de um olhar atento às distinções e convenções que estão implícitas em nosso uso comum da linguagem, que carregam as marcas da prática social; (ii) as três principais questões que o autor se propõe a resolver repousam sobre a necessidade de diferenciar o Direito e as obrigações jurídicas das ordens apoiadas por ameaças, compreender o que são regras e como o Direito se diferencia da mera convergência de comportamento e, por fim, como Direito e moralidade estão relacionados; (iii) ainda que descrevam o direito de formas diferentes e empreguem metodologias diferentes, Hart e Austin compartilham das mesmas virtudes teórico-explicativas relacionadas ao projeto de descrever o Direito; (iv) Hart aponta falhas na teoria imperativista e a refuta, especialmente no Capítulo III, através da problematização da uniformização do Direito como comandos sustentados por ameaças de sanção; vez que (v) o Direito não é constituído apenas por regras que impõem deveres, mas também por regras que conferem poderes; (vi) a nulidade não pode ser igualada à sanção (dados seus diferentes propósitos e efeitos); e (vii) o Direito é constituído por diversos tipos de regras, todas prescritivas e endereçadas a guiar a conduta de todos os que vivem sob elas, se aplicando até mesmo aos seus criadores, sem que para isso seja necessário o comando face a face ou a ameaça de sanção.Tendo tudo isso em mente, o leitor deverá recordar-se de que, até então, não colocamos em questão a ideia de “soberania”, tão somente pressupomos a existência de um “soberano” (pessoa ou grupo de pessoas) cujas ordens gerais constituem as leis de toda sociedade que tem um “Direito”. Isto é, pressupomos, para fins de argumentação, que em toda sociedade em que há Direito, há um soberano caracterizado pelo hábito de obediência — aquele(s) que é(são) habitualmente obedecido(s) e não obedece(m) a mais ninguém. O “hábito de obediência” define a Teoria da Soberania desenvolvida por Austin, segundo a qual a estrutura vertical de soberanos-súditos não só caracteriza uma sociedade, mas é parte “essencial” dela, de tal forma que o soberano e a sociedade constituem um só.Diante disso, Hart questiona: (1) se esse hábito de obediência é suficiente para caracterizar dois importantes elementos do Direito, quais sejam, (i) a continuidade da autoridade (sucessão) para produzir ordens que se tornam leis desde o momento em que são proferidas; e (ii) a persistência das leis após o falecimento do legislador habitualmente obedecido; (2) se o soberano é realmente juridicamente ilimitado e ilimitável, como diz a teoria da soberania austiniana e, mais especificamente, (i) se tais características são realmente necessárias para a existência do Direito; e (ii) se a presença ou ausência de limites legais ao Poder Legislativo pode ser entendida nos termos do hábito de obediência. Essas questões são enfrentadas no Capítulo IV, “O Soberano e o Súdito”. 

1. O hábito de obediência e a continuidade do Direito

É difícil identificar qual conexão deve existir entre dar uma ordem e a performance de determinado ato para que se possa falar em “obediência”. Mais ainda, qual a relevância do fato de que aquele que recebe a ordem realizaria o exato comando mesmo em sua ausência? Isso pode até não importar diante de leis que obrigam pessoas a fazer coisas que elas jamais fariam, mas para entender o que são hábitos gerais de obediência, nos é útil pressupor um cenário em que a diferença entre “hábito” e “obediência” pode ser mais fácil de distinguir e observar.
 
 
Seguiremos o raciocínio hartiano de pressupor um cenário em que determinada população vive em um território específico, no qual reina, há muito, um monarca absoluto chamado “Rex” (você possivelmente já ouviu a expressão “Rex’s Law”, ou “o Direito de Rex”, e agora sabe exatamente de onde vem). Rex controla seus súditos através de ordens apoiadas por ameaças que requerem que as pessoas façam coisas que não fariam sem que fossem ordenadas para tanto, ou que se abstenham de fazer certas ações pelo mesmo motivo. O ato de governar foi problemático no início, mas hoje Rex pode esperar receber obediência da população.
 
Em decorrência das graves ameaças que o monarca impõe em caso de descumprimento de suas ordens, é difícil pressupor que as pessoas têm um mero hábito de observá-las. Existem exemplos, como o ato de dirigir do lado esquerdo da via, na Inglaterra, ao qual é possível referir como “hábito”, contudo, não se engane, a regularidade/repetição de um ato, por si só, não é capaz de caracterizar um “hábito” no sentido específico a que corresponde à teoria austiniana, sobretudo se não estamos falando de um ato irreflexivo e sem esforço. Isso fica explícito se recordarmos o fato de que pagamos impostos regularmente e, mesmo assim, não nos parece certo falar que temos um “hábito” de pagar impostos. Voltando para Rex, notamos que o hábito de obediência é uma relação pessoal entre ele e seus súditos, mas isso é o mesmo que dizer, tão somente, que a população age em convergência com determinado ato comandado, assim como agem em convergência aqueles que vão à Igreja todos os domingos.
 
Com efeito, estamos falando de uma sociedade que possivelmente jamais existiu ou existirá, por ser deveras simples e prescindir de noções sobre a legitimidade do monarca, se suas ordens são justas, etc. Mas mesmo essa sociedade extremamente simples pode constituir um “Estado”, em razão da união que decorre do fato de todos obedecerem a uma mesma pessoa, que não obedece a mais ninguém em seu território. É possível, evidentemente, tornar essa sociedade simples em outra minimamente mais complexa, adicionando alguns problemas comuns a todas as sociedades.
Para tanto, devemos imaginar e problematizar a seguinte situação: Rex falece deixando um sucessor (Rex II). Aqui surge um problema para este sistema jurídico: o fato de que Rex era habitualmente obedecido não significa nada para seu sucessor, e poderemos dizer que, até que o próprio Rex II também receba obediência habitual, haverá um interregnum em que nenhuma ordem será considerada “lei”. Apenas após certo tempo será possível observar se Rex II será habitualmente obedecido, a partir de quando suas ordens poderão ser consideradas “leis”, como ocorria com seu antecessor.
Estamos diante de uma situação de clara descontinuidade das leis e uma certa interrupção do Direito, eventos que nenhuma sociedade que se considere possuidora de um “Direito” pode ou mesmo costuma se ver refém. Isso ocorre porque o fato de alguém ser habitualmente obedecido é um mero fato a respeito da convergência de comportamento de outras pessoas, e não parece poder garantir, por si só, qualquer obrigação jurídica, como fazem as regras que asseguram a sucessão da legislatura, a partir da qual os termos gerais para qualificar o próximo soberano são determinados precedentemente ao momento de interrupção e descontinuidade. No caso em questão, basta existir uma regra determinando a sucessão ao filho mais velho de Rex, que Rex II estará habilitado para tanto, fazendo com que suas ordens sejam leis desde que emanadas, sem a necessidade de esperar tempo suficiente para estabelecer um hábito de obediência.
ATeoria da Soberania, enquanto constituída por hábitos de obediência, não engloba o direito à sucessão, na medida em que insiste que “é o soberano quem faz as regras, e não as regras que fazem o soberano”¹ e, por isso, falha em explicar a continuidade do Direito ou, em outras palavras, não prevê a forma com que a próxima legislatura passa a produzir leis desde o momento em que são emanadas pelo soberano. São dois os momentos de seu fracasso: (i) o hábito de obediência falha em conferir ao novo legislador o direito de ser obedecido; (ii) o hábito de obediência do antigo legislador não pode pressupor que os atos da nova legislatura serão obedecidos. Para corrigir os erros desta teoria, uma prática social mais complexa teria de ter lugar: a regra que determina o direito de sucessão deve ser uma prática socialmente aceita e que justifica por que Rex II teria algum direito a comandar.Aqui, estamos diante de alguns problemas: o que caracteriza essa prática social mais complexa? O que é aceitar uma regra? Como um hábito se diferencia de uma regra? Regras e hábitos são, ambos, gerais, ainda que não invariáveis, a serem repetidos sempre que houver oportunidade para tanto em uma comunidade ou grupo. Mas eles têm três distinções importantes, quais sejam: (i) para a existência de um hábito, a mera convergência de comportamento basta. O desvio de comportamento não é o bastante para dar origem a críticas (ao menos a críticas que tenham como sua justificação apenas o apontamento do desvio de um hábito). No caso das regras, há um aspecto inerentemente normativo, no sentido de que um comportamento que represente um desvio de uma regra normalmente será acompanhado de uma críticacom referência a esta mesma regra. Assim, não só existe um bom motivo para criticar o desvio de comportamento (partindo do pressuposto de que a regra é razoável ou mesmo moralmente justificada), como há pressão por conformidade por parte das outras pessoas que aceitam a regra; (ii) ainda nas regras, o desvio não é só recebido com críticas, mas ele existe por uma boa razão, isto é, as críticas que decorrem da quebra de uma regra são uma reação justificada e vista como legítima tanto por quem formula a crítica quanto para quem as recebe (supondo que ambas as pessoas aceitam a regra, nesta situação). Determinar o ponto a partir do qual uma comunidade pode ser considerada como tendo uma regra pode ser uma tarefa permeada pela vagueza, mas não parece que devemos nos preocupar em saber quantas pessoas devem se engajar em tais atitudes para podermos afirmar quando um grupo possui uma “regra” — tampouco com as minorias que se recusam a cumpri-la — tanto quanto não precisamos nos ocupar em inquirir “quantos fios de cabelo uma pessoa deve ter para ser considerada careca”². É necessário saber, tão somente, que a confirmação de que uma comunidade tem uma “regra” não é incompatível com a existência de uma minoria que se recusa a observá-la; e (iii) para existir um hábito generalizado, os membros do grupo não precisam entendê-lo como um comportamento geral, sendo suficiente que ajam como outros de fato também agem. Por outro lado, onde existe regra, é necessário que se observe o comportamento em questão como um padrão geral a ser seguido por todos. Enquanto é possível identificar um hábito a partir de um ponto externo de observação, que permite reconhecer a existência do comportamento uniforme, as regras têm um aspecto “interno” que confere razões para agir àqueles que as aceitam e estão sob elas.Para exemplificar essa questão, seguiremos de maneira semelhante os passos do autor quando utiliza um jogo para demonstrar no que consiste esse aspecto interno das regras, mas em vez de falarmos de xadrez, falaremos do Uno. Alguém que observa uma partida de Uno pela primeira vez poderia pensar que é mero hábito dos jogadores ficar sem jogar uma rodada e comprar mais quatro cartas quando outro participante os endereça a carta “+4” e, em certo sentido, isto até é verdade. Afinal, quando se endereça a alguém uma carta “+4”, costumamos ver que este mesmo alguém fica sem jogar por uma rodada. Contudo, parar neste ponto da explicação seria negligenciar um aspecto importantíssimo de nossa compreensão sobre a natureza dos jogos e das regras: a verdade é que os jogadores engajam em atividades críticas em relação ao comportamento uns dos outros, pois eles não jogam cartas de tal forma por mera conveniência ou hábito, mas carregam uma opinião a respeito do jeito correto de jogar.Essas opiniões se manifestam em críticas ao comportamento dos demais jogadores e através da exigência por conformidade, especialmente daqueles que acham normal jogar +4 em cima de outro +4 (ou +2 em cima de +4, tanto faz, está errado!). Quando engajamos em semelhantes jogos, utilizamos uma linguagem normativa, como “você não deve jogar +4 em cima de +4”, “você deve deixar de jogar quando comprar +4”, “está errado jogar +2 em cima de +4, conforme o próprio Uno Official já disse, em sua conta no Twitter”. É verdade, eu posso provar:
 
 
Existem fatos importantes demais para serem simplesmente ignorados. É o caso da existência das regras: para que elas existam, é necessário que existam certos comportamentos tidos como padrões, dos quais decorrem as críticas e demandas por conformidade, bem como o reconhecimento de que estes se justificam ou são legítimos e que se expressam em terminologia normativa. É simplesmente errado, do ponto de vista das regras que aceitamos, jogar “+4” em cima de “+2” para que alguém compre 6, e você não deve fazer isso.Voltando para o Direito de Rex, será útil pressupormos um grupo social com regras que, além de tornarem determinados comportamentos padrão, oferecem a identificação desse padrão de forma menos direta, por referência às palavras de uma pessoa específica. Semelhante regra habilitaria Rex não só a dizer o que deve ser feito, mas conceder-lhe-ia direito para tanto; não haverá apenas obediência às suas ordens, mas também concordar-se-á que existe um dever de lhe obedecer. Assim, Rex terá autoridade para legislar, e porque não estamos tratando de “comandos”, mas de padrões normativos do tipo “é proibido fazer x” ou “é permitido fazer y nos casos em que z”, não há mais motivos para que ele não seja vinculado por sua própria legislação.As práticas sociais que circunscrevem a autoridade legislativa serão essencialmente as mesmas que circunscrevem as regras mais “diretas” de conduta. Esse tipo de regra, enquanto aceita pelo grupo, diferente de um hábito de obediência, explica a continuidade do Direito em uma sociedade e, na medida em que não olha apenas para o presente, mas para o futuro, determina que uma pessoa, em determinado período, é qualificada para criar novas leis. Rex é apenas a pessoa qualificada durante um período específico, assim como Rex II — mesmo antes de se verificar um hábito de obediência a qualquer um dos dois, na existência de tal regra, cada um possui direito de legislar.
Ainda que se considere Rex um legislador e suas ordens leis, o hábito de obediência a ele conferido não explica a continuidade das leis no reinado de seu sucessor, porque hábitos não são “normativos”, isto é, não dão, por si só, razões para agir nem conferem autoridade de forma nenhuma. Mas o que acontece quando somos forçados a aplicar nosso aprendizado com essa simples sociedade em um sistema jurídico complexo, como são os modernos? É isso que investigaremos.

2. A persistência das leis

Anteriormente, nos ocupamos em saber como uma primeira ordem emanada do sucessor ao trono pode ser considerada lei antes que ele seja habitualmente obedecido. Agora, nossa atenção se volta para outra questão: como uma lei criada por um legislador falecido há muito pode permanecer no ordenamento sem que se preste obediência a ele? Hart responde a essa pergunta da mesma forma que à anterior: em primeiro lugar, o mero hábito de obediência é incapaz de explicar como uma lei permanece em vigor após a morte de seu criador — e, logicamente, não se pode dizer haver obediência alguma aos mortos — mas a mesma regra que qualifica alguém para criar leis o faz. A autoridade que Rex I, II ou, caso exista o III, possuir para legislar, decorre da mesma regra geral, que pode ser “o filho mais velho da linha sucessória é herdeiro do trono”.
 
Austin e Bentham seguiam Hobbes quando da afirmação de que “[t]he legislator is he, not by whose authority the laws were first made, but by whose authority they now continue to be laws.” [“o legislador não é aquele sob cuja autoridade as leis foram feitas primeiramente, mas aquele por cuja autoridade elas continuam agora a serem leis”]. Para esses autores, leis muito antigas continuam tendo esse status devido ao seu reconhecimento como tal pelo soberano atual, que se dá de forma tácita, isto é, o soberano, que poderia revogá-las, ao não fazê-lo está implicitamente escolhendo as manter no ordenamento. O mesmo argumento do comando “tácito” do soberano já havia sido refutado por Hart no capítulo anterior quando dos costumes (ver aqui), e pode ser igualmente utilizado para o presente momento.
 
 
Dessa vez, contudo, Hart vai além: observa que (i) os tribunais sequer fazem distinção entre leis antigas e “atuais”, porque todas são consideradas sob um único signo, isto é, são leis; (ii) menos ainda decidem os juízes com base na ideia de que o soberano “tacitamente” concorda com sua prescrição; por fim, reitera que (iii) assim como os costumes, leis são leis desde o momento em que são criadas pelo legislador, não dependem de aplicação. Se o status legal de uma ordem antiga decorre do comando tácito do soberano, e esse comando se dá no momento da aplicação da lei, a teoria não consegue explicar como leis são leis antes de sua aplicação, o que efetivamente acontece.
Resta pouco para que possamos rejeitar por inteiro a teoria austiniana e, finalmente, ter contato com a análise do próprio Hart, portanto, sigamos.
3. Limitações Jurídicas ao Poder Legislativo
Em uma melhor luz da teoria da soberania até aqui representada, se sustentou que em toda sociedade que tem Direito há um soberano habitualmente obedecido por todos e que não obedece a mais ninguém, sobre o qual inexistem limitações legais. Essa teoria nos permite observar dois elementos significativos: (i) é possível diferenciar nas ordens do soberano o Direito de determinada sociedade, diferenciando-as de outras regras sociais, princípios ou moralidade; e (ii) podemos determinar se estamos diante de um sistema jurídico independente ou apenas subordinado a qualquer outro ainda maior.
 
Quando observamos um Estado moderno, notamos que muitos deles possuem constituições que limitam o Poder Legislativo não só formal como também materialmente, e não há quem ouse dizer que ali não há Direito. Contudo, antes de direcionar nosso estudo a um sistema jurídico mais complexo, devemos nos perguntar no que consiste o fato de um soberano como Rex ser juridicamente ilimitado (não obedecer a mais ninguém) a fim de investigar quão precisa é a teoria da soberania.Em tal sistema, o soberano possui certo procedimento para que suas ordens sejam leis a fim de que desejos pessoais não se confundam com comandos gerais, mas não há nenhuma limitação à “área” de atuação do monarca, apenas uma “forma” específica para que seus comandos sejam lei. Porém, em algum momento poder-se-á facilmente aceitar uma regra prescrevendo que nenhuma ordem de Rex será válida se excluir habitantes nativos de seus territórios ou os prender sem julgamento. Em semelhantes casos, Rex estará sujeito a limitações legais que, caso violadas, farão com que suas ordens sejam nulas, mas de forma alguma implicam a perda de soberania por parte do monarca.
Uma regra que confere autoridade para Rex legislar, impondo determinadas limitações materiais, não pode ser expressada em termos de ausência ou presença da obediência de Rex a outro soberano em seu território. Ainda que Rex obedecesse às regras de Tyrannus, um monarca em um território vizinho, não é lícito dizer que ele deixou de ser soberano ou que sua autoridade legislativa é subordinada a outro em seu território. Em ambos os casos, nada evidencia a perda de soberania e autoridade legislativa pertencentes ao monarca em seu território.
Partindo desses breves apontamentos, Hart extrai cinco elementos vitais para o entendimento da fundação de um sistema jurídico, frequentemente obscurecidos pela teoria da soberania:(i) limitações jurídicas à autoridade legislativa consistem em incapacidades previstas pelas regras para qualificar um soberano a legislar, não em deveres impostos ao legislador para que obedeça outro soberano;(ii) para estabelecer que uma ordem é lei não precisamos rastreá-la de volta ao soberano que a declarou, nem no sentido de que sua autoridade legislativa é juridicamente irrestrita, nem no sentido de que ele é habitualmente obedecido por todos e não obedece a mais ninguém. Apenas precisamos conferir se a ordem foi feita por um legislador qualificado para legislar segundo uma regra e que nenhuma das restrições contidas nessa regra afetam diretamente a ordem em questão;(iii) para demonstrar que estamos diante de um sistema jurídico independente não precisamos identificar que seu legislador supremo é juridicamente ilimitado e não obedece a mais ninguém, tão somente que as regras que qualificam o poder legislativo não conferem autoridade superior a nenhum outro órgão ou pessoa(s) no mesmo território;(iv) é preciso diferenciar entre uma autoridade legislativa ilimitada (sem limitações formais ou materiais) e outra que, apesar de limitada materialmente, é reconhecida como superior em determinado território; e(v) enquanto a questão da presença ou ausência de limitação jurídica à autoridade legislativa do soberano é de maior importância, o hábito de obediência é no máximo indiretamente interessante. O único sentido em que o fato de que o soberano obedece a outros em seu território é relevante — quando for o caso -, é que pode constituir uma pista de que, sob as leis, sua autoridade de legislar é subordinada à autoridade de outros.

4. O soberano para além do órgão legislativo

Para fugir à caracterização do poder legislativo como limitado juridicamente e fazer sentido da teoria da soberania, alguns argumentos foram feitos a fim de considerar o eleitorado como soberano e, portanto, ilimitado juridicamente. Suponhamos que o eleitorado tenha poder integral de revisão (emenda) e pode revogar todas as limitações legais ao poder legislativo, que ele mesmo havia imposto e que o órgão legislativo habitualmente obedece. Como Hart refere:

“Podíamos retirar a nossa objecção de que as limitações jurídicas ao poder legislativo são erradamente representadas como ordens e, por conseguinte, como deveres que lhe são impostos. Mas podemos, mesmo assim, supor que tais restrições são deveres que o eleitorado, ainda que tacitamente, ordenou ao órgão legislativo que observasse?”³

Todas as objeções já feitas ao modelo de ordens tácitas se aplicam com mais vigor aqui e, para além disso, o que será possível argumentar quando percebemos que a maioria dos sistemas possui limites que estão fora do alcance de alteração por parte do eleitorado, como realmente ocorre em sistemas jurídicos democráticos? Se o eleitorado não está livre de limitações jurídicas, ele não é soberano segundo a teoria da soberania austiniana. Em conclusão, não parece nada absurdo concluir que é possível — e portanto a teoria austiniana não explica a fundação e funcionamento de um sistema jurídico — que o soberano esteja de fato sob limitações jurídicas à sua autoridade legislativa, e ao mesmo tempo exerça um poder supremo dentro de seu território.


 Recomendação adicional

  • Para uma ampla abordagem da crítica à teoria austiniana, recomendamos o vídeo “Teoria do Direito Aula 08 — Refutação do Imperativismo de John Austin”, do Prof. André Coelho. A partir de aproximadamente 1h06min, o professor André Coelho diz não entender que Hart efetivamente tenha enfrentado o argumento da aceitação tácita das leis não revogadas pelo novo monarca, mas que ele tão somente a afastou, recorrendo à antiga argumentação sobre a aprovação tácita dos costumes que vimos anteriormente. Porém, diante daquela situação, a antiga argumentação fora uma prova convincente, enquanto aqui a tréplica de Hart não poderia ser tão simples a fim de demonstrar a falseabilidade da teoria da soberania. Ainda que sua perspectiva permaneça persuasiva, na opinião de André Coelho, Hart poderia ter oferecido uma crítica mais robusta em sua tréplica. Assista aqui.

 

Referências bibliográficas

¹ SHAPIRO, Scott J. What is the Rule of Recognition (and Does it Exist)? In: ADLER, Matthew; HIMMA, Kenneth Einar (eds.). The Rule of Recogntition and the U.S. Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2009, pp. 235–268.

² HART, H.L.A. O conceito de Direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.

³ Id. p. 86

 

Notas

¹ Essa formulação extremamente didática das diferenças entre as teorias imperativistas de Austin e Bentham, de um lado, e a teoria centrada em regras de Hart, de outro, é aparentemente devida a uma fala de Jeremy Waldron, como registra Scott Shapiro. Cf. SHAPIRO, Scott J. What is the Rule of Recognition (and Does it Exist)? In: ADLER, Matthew; HIMMA, Kenneth Einar (eds.). The Rule of Recogntition and the U.S. Constitution. Oxford: Oxford University Press, 2009, pp. 235–268.

² Nas palavras de Hart, “A questão relativa a quantas pessoas devem obedecer a quantas ordens gerais desse tipo e durante quanto tempo, para que haja direito, não admite mais respostas definitivas do que a questão respeitante a quantos cabelos menos deve um homem ter para ser careca”. HART, H.L.A. O conceito de Direito. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. p. 29.